Conto: Aquela Luz na Escuridão | Parte 03

em sexta-feira, 10 de agosto de 2018


Clique para ler as partes 01 e 02.

Acordei e senti o dia entrando nos meus olhos através das lentes dos óculos escuros.  Erébia dirigia e percebi que estávamos na rua da minha casa.

— Bom dia. — balbuciei ainda sonolenta.
— Bom dia, Liz. — Por que senti uma coisa estranha na voz dela?
— Qual a programação para hoje?
— Nos livrarmos das suas coisas.
— Quê?

Erébia estacionou e entramos na casa. Roxy nos encarou do seu canto no apoio do sofá. Não sei se é por que eu tinha acabado de acordar, mas uma sensação de que aquela casa não me pertencia mais, era bem estranha. Parecia que eu tinha estado ali há muito, muito tempo atrás.
Subimos e Erébia começou a arrumar as malas.

— Quais as roupas que mais gosta? — Ela perguntou.

Depois de guardar a mala no carro, Erébia descarregou quatro galões enormes de gasolina e começou a espalhar por toda a casa. Roxy correu para fora e eu tentava assimilar o que estava acontecendo.
Minha mente flutuava, era difícil focar, estabelecer prioridades, entender o que estava havendo. Então lá do fundo emergiu uma lembrança tão luminosa quanto a chama do fósforo que estava aceso em minha mão. Uma certeza que as coisas não estavam como deviam ser.


— Peraí! — Gritei.
— Não grita assim! Quer estourar meus ouvidos, maluca?
— O que estamos fazendo?
— Não é óbvio?
— Não, não é. E você vai me explicar tudo agora ou não vamos a lugar nenhum!
— Ah, não? — E Erébia sorriu aquele sorriso de quem já ganhou a briga. Mas não ia, não mesmo!

Nossas consciências se encararam, nossos olhos sustentaram o peso uma da outra. Erébia tentou mover o meu corpo, mas não conseguiu, porque dessa vez estou desperta. E ela até podia morar em mim, mas eu era a dona do meu corpo! Mesmo assim, o fósforo caiu, começando o incêndio na lavanderia.

Não permiti que Erébia movesse o meu corpo. Nós não sairíamos dali. Eu não ia deixar ela queimar a casa em que nasci, a minha casa!

— Precisamos sair daqui, Liz! Sair agora!
— Não vou a lugar nenhum. Ou você apaga esse fogo ou a gente vai queimar aqui. Seus dois mil anos vão acabar numa fogueira!
— Você não nos deixará morrer.
A lavandeira estava quente, muito quente. O fogo se alastrava rápido e se eu não fizesse nada tudo ali iria pelo ares. Comigo junto.
— Não é óbvio pra você, que não pode mais viver como antes? Quando me aceitou, aceitou também a minha vida e as coisas que preciso fazer. Nós precisamos encontrar uma maneira de liberar os meus poderes. Eu não consigo usá-los estando aqui dentro.
— Isso não é desculpa para incendiar minha casa, Erébia! Quando a minha mãe acordar ela vai voltar para onde?
— Liz...
— Não sei que porra que você quer Erébia, mas não vai ser tão fácil me apagar. — Falei quase rosnando.

Corri para a cozinha, apanhei o extintor e comecei a apagar o fogo da lavanderia. Não foi fácil e a fumaça já tinha começado a queimar o meu peito. Definitivamente aquele não era um bom dia para morrer.

***

Depois de tomar toda água da geladeira, eu percebi que quase tinha morrido. Aquele fedor de queimado não ia largar do meu corpo tão cedo.

— Chega. — Eu disse. —Você precisa de um novo corpo. Eu me sentia traída e sobretudo, assustada com o que tinha acabado de acontecer.
— Só terei energia para isso de novo daqui uns cem anos.
— Nós vamos viver assim nos próximos cem anos?! — eu não queria, mas o desespero começou a tomar conta.
— Não se preocupe, coelhinha. Humanos não costumam viver tanto tempo. — Sorriu sarcástica.
Minha barriga estremeceu, e inspirei o ar com força. Estava prestes a chorar. Mas não ia. Não dessa vez.
— Você já tinha pensado em tudo, não é? Você sabia que eu não te diria não. Que a trouxa aqui te daria essa merda desse corpo de boa vontade em troca de umas migalhas de companhia, não é?

A verdade, e eu sabia que era verdade, porque Erébia se fechava em silêncio, ria da minha cara. Eu devia ser muito estúpida. Ela nunca havia me amado, Erébia só queria um corpo novo. Talvez nem tivesse ninguém na cola dela. Eu era um saco vazio, uma embalagem a venda. O peito doía numa falta de ar absurda.

— Já que é assim, vamos viver a MINHA vida enquanto eu estiver viva.  E isso inclui manter a minha casa intacta. Eu sei que você me acha uma estúpida, Erébia. Mas aceitar você em mim não te dá o direito de me apagar! De destruir a minha vida! — A essa altura eu estava gritando. Claro.
Erébia me olhava estupefata.
— Você é louca, garota. Sempre foi. Você tem noção do que está me pedindo?
— O que são algumas décadas, para você, Erébia? Isso vai passar pra você como um piscar de olhos, mas pra mim... é a minha vida, poxa! A vida que você está tentando acabar, não é?
— Você quer que eu viva como uma mortal comum. E isso não pode acontecer. Se ficarmos aqui, estaremos vulneráveis, não entende? E eu não tenho os meus poderes para nos proteger.
— Ótimo! — Eu disse, o desafio ficando nítido na minha voz. — Então pode se acostumar com a minha vidinha mortal sem graça, Erébia Stapapoulos! Por que eu não vou abrir mão da minha vida, pra embarcar na sua!

A conversa morreu um pouco depois, sem acordo. Arranquei dela a promessa de que não haveriam mais incêndios envolvendo qualquer coisa minha. Algo me diz que Erébia não era boa em cumprir promessas.

De qualquer maneira, a maior merda de todas eu já tinha feito sem nem pensar: aceitar que Erébia morasse dentro de mim. Agora nós tínhamos que seguir sem tentar nos matar. Ou morrer tentando.


_____________________________________________________________________________

Continua! Em breve a parte 04 estará aqui no blog!

Nenhum comentário:



Topo