Acordei e senti o dia entrando
nos meus olhos através das lentes dos óculos escuros. Erébia dirigia e percebi que estávamos na rua
da minha casa.
— Bom dia. — balbuciei ainda
sonolenta.
— Bom dia, Liz. — Por que senti
uma coisa estranha na voz dela?
— Qual a programação para hoje?
— Nos livrarmos das suas coisas.
— Quê?
Erébia estacionou e entramos na
casa. Roxy nos encarou do seu canto no apoio do sofá. Não sei se é por que eu
tinha acabado de acordar, mas uma sensação de que aquela casa não me pertencia
mais, era bem estranha. Parecia que eu tinha estado ali há muito, muito tempo
atrás.
Subimos e Erébia começou a
arrumar as malas.
— Quais as roupas que mais gosta?
— Ela perguntou.
Depois de guardar a mala no
carro, Erébia descarregou quatro galões enormes de gasolina e começou a
espalhar por toda a casa. Roxy correu para fora e eu tentava assimilar o que
estava acontecendo.
Minha mente flutuava, era difícil
focar, estabelecer prioridades, entender o que estava havendo. Então lá do
fundo emergiu uma lembrança tão luminosa quanto a chama do fósforo que estava
aceso em minha mão. Uma certeza que as coisas não estavam como deviam ser.
— Peraí! — Gritei.
— Não grita assim! Quer estourar
meus ouvidos, maluca?
— O que estamos fazendo?
— Não é óbvio?
— Não, não é. E você vai me
explicar tudo agora ou não vamos a lugar nenhum!
— Ah, não? — E Erébia sorriu
aquele sorriso de quem já ganhou a briga. Mas não ia, não mesmo!
Nossas consciências se encararam,
nossos olhos sustentaram o peso uma da outra. Erébia tentou mover o meu corpo,
mas não conseguiu, porque dessa vez estou desperta. E ela até podia morar em
mim, mas eu era a dona do meu corpo! Mesmo assim, o fósforo caiu, começando o
incêndio na lavanderia.
Não permiti que Erébia movesse o
meu corpo. Nós não sairíamos dali. Eu não ia deixar ela queimar a casa em que
nasci, a minha casa!
— Precisamos sair daqui, Liz!
Sair agora!
— Não vou a lugar nenhum. Ou você
apaga esse fogo ou a gente vai queimar aqui. Seus dois mil anos vão acabar numa
fogueira!
— Você não nos deixará morrer.
A lavandeira estava quente, muito
quente. O fogo se alastrava rápido e se eu não fizesse nada tudo ali iria pelo
ares. Comigo junto.
— Não é óbvio pra você, que não
pode mais viver como antes? Quando me aceitou, aceitou também a minha vida e as
coisas que preciso fazer. Nós precisamos encontrar uma maneira de liberar os
meus poderes. Eu não consigo usá-los estando aqui dentro.
— Isso não é desculpa para
incendiar minha casa, Erébia! Quando a minha mãe acordar ela vai voltar para
onde?
— Liz...
— Não sei que porra que você quer
Erébia, mas não vai ser tão fácil me apagar. — Falei quase rosnando.
Corri para a cozinha, apanhei o
extintor e comecei a apagar o fogo da lavanderia. Não foi fácil e a fumaça já
tinha começado a queimar o meu peito. Definitivamente aquele não era um bom dia
para morrer.
***
Depois de tomar toda água da
geladeira, eu percebi que quase tinha morrido. Aquele fedor de queimado não ia
largar do meu corpo tão cedo.
— Chega. — Eu disse. —Você
precisa de um novo corpo. Eu me sentia traída e sobretudo, assustada com o que
tinha acabado de acontecer.
— Só terei energia para isso de
novo daqui uns cem anos.
— Nós vamos viver assim nos
próximos cem anos?! — eu não queria, mas o desespero começou a tomar conta.
— Não se preocupe, coelhinha.
Humanos não costumam viver tanto tempo. — Sorriu sarcástica.
Minha barriga estremeceu, e
inspirei o ar com força. Estava prestes a chorar. Mas não ia. Não dessa vez.
— Você já tinha pensado em tudo,
não é? Você sabia que eu não te diria não. Que a trouxa aqui te daria essa
merda desse corpo de boa vontade em troca de umas migalhas de companhia, não é?
A verdade, e eu sabia que era
verdade, porque Erébia se fechava em silêncio, ria da minha cara. Eu devia ser
muito estúpida. Ela nunca havia me amado, Erébia só queria um corpo novo.
Talvez nem tivesse ninguém na cola dela. Eu era um saco vazio, uma embalagem a
venda. O peito doía numa falta de ar absurda.
— Já que é assim, vamos viver a
MINHA vida enquanto eu estiver viva. E isso
inclui manter a minha casa intacta. Eu sei que você me acha uma estúpida, Erébia.
Mas aceitar você em mim não te dá o direito de me apagar! De destruir a minha
vida! — A essa altura eu estava gritando. Claro.
Erébia me olhava estupefata.
— Você é louca, garota. Sempre
foi. Você tem noção do que está me pedindo?
— O que são algumas décadas, para
você, Erébia? Isso vai passar pra você como um piscar de olhos, mas pra mim...
é a minha vida, poxa! A vida que você está tentando acabar, não é?
— Você quer que eu viva como uma
mortal comum. E isso não pode acontecer. Se ficarmos aqui, estaremos
vulneráveis, não entende? E eu não tenho os meus poderes para nos proteger.
— Ótimo! — Eu disse, o desafio
ficando nítido na minha voz. — Então pode se acostumar com a minha vidinha
mortal sem graça, Erébia Stapapoulos! Por que eu não vou abrir mão da minha
vida, pra embarcar na sua!
A conversa morreu um pouco
depois, sem acordo. Arranquei dela a promessa de que não haveriam mais
incêndios envolvendo qualquer coisa minha. Algo me diz que Erébia não era boa
em cumprir promessas.
De qualquer maneira, a maior
merda de todas eu já tinha feito sem nem pensar: aceitar que Erébia morasse
dentro de mim. Agora nós tínhamos que seguir sem tentar nos matar. Ou morrer
tentando.
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Continua! Em breve a parte 04 estará aqui no blog!
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