Acordei com a claridade da manhã
invadindo o quarto. Era sábado. Minha cabeça doía de uma maneira que jamais
pensei ser possível doer. Imagens da noite passada chegando embaçadas e
atropeladas na minha mente. Erébia. Ela tinha vindo... Nós fizemos amor. E eu
tinha surtado. Não necessariamente nessa ordem. Mas tinha acontecido. E tinha o
tufão.
Olhei alarmada ao redor. Os
móveis estavam no lugar. Nada parecia errado e eu tinha delirado forte noite
passada. Os remédios para ansiedade estavam comprometendo minha cabeça.
Certeza.
Levanto ainda zonza mas logo
percebo Roxy deitado sobre algo no chão. Há alguém caído de bruços no meu
quarto, servindo de almofada para o meu gato.
Reconheço aquele corpo magro, o cabelo encaracolado quase laranja. Toco
no ombro de Erébia e sinto sua pele gelada. Viro seu rosto para cima. A pele
está roxeada. Ela não respira. Minha mente registra o que eu já tinha
constatado desde quando a vi, mas não queria aceitar. Eu sabia que ela estava
morta.
Tapei a boca e me arrastei para o
outro lado do quarto. Por fora eu estava muda, mas por dentro gritava
histérica. O estômago embrulhou e pontadas fortes alfinetaram minha cabeça.
Como isso foi acontecer?
— Liz?
— Erébia? Onde você está?
— Aqui. Dentro de você.
Os batimentos do meu coração
voltaram ao normal e uma sensação de bem estar se espalhou pelo meu corpo.
— Foi você quem fez isso?
— Pelo menos isso posso fazer.
Agora me escute, precisamos nos livrar do meu corpo.
— O quê?!
— Nós devíamos ter feito isso na
minha casa, mas tudo aconteceu tão rápido.
— Você sabe que tenho problema
com coisas mortas, Erébia. Eu não vou tocar em você.
Ouvi um suspiro impaciente dentro
de mim.
— O corpo do outro lado não sou
eu, Liz. Eu estou aqui com você. Em
você. Aquilo ali é só uma casca. Não pode nos fazer mal nenhum. Mas pode nos enfiar
em sérios problemas.
Okay. Vamos lá, Lizandra. Você
deixou isso acontecer, agora cuide disso. Levantei, respirei fundo e levantei
os ombros. Mas quando vi o cadáver novamente, minhas pernas bambearam e corri
para o banheiro. Quase não deu tempo de acertar o vômito no vaso.
— Você pode fazer aquilo de novo?
De me acalmar?
— Para quê? Vai ser só
desperdício de energia.
— Então o seu corpo vai apodrecer
na minha casa? Se você não me ajudar, eu não vou conseguir chegar perto
daquilo.
— Você fala com muito nojo de um
corpo que te fez bem feliz ontem à noite. — A frase terminou com uma risada
alta.
Irritante. E me deu ainda mais
vontade de vomitar só de lembrar que tinha transado com a coisa morta no meu
quarto. Outro suspiro impaciente, que não era meu.
— Me deixe assumir o seu corpo.
— E como faço isso?
— É como se deixar boiar na água.
Enquanto você boia eu posso assumir e resolver tudo.
Fechei os olhos e foquei em
boiar. Consegui. Minha consciência tocava uma barreira líquida dentro de mim
mesma. Eu podia ver o contorno de Erébia se ligando ao meu cérebro, tomando
conta do meu corpo.
Ela levantou, foi até o
guarda-roupas sem nem mesmo olhar para o seu antigo corpo.
— O que você quer vestir hoje?
— Pode escolher.
— Como se tivesse o que escolher.
Desde quando você só usa preto, Liz?
Não respondi. Lá no fundo do
armário, ela encontrou o vestido azul florido que tinha me dado anos antes.
— Eu sabia que você não tinha
jogado fora. — disse com ar divertido na voz — Vamos estrear esse vestido hoje.
Juntas.
O vestido ficou perfeito no meu
corpo. Mas de alguma maneira que não sei explicar, eu sabia que quem estava
usando era ela. Opa, o que ela estava fazendo?
— Tem um monte de sapatos lá em
baixo, Erébia! Por que tem que tirar esses coturnos velhos do cadáver? —
Perguntei, espantada.
— Nada no mundo é mais
confortável que os meus coturnos. E eles combinam com tudo, olha só. — Disse já
terminando de calçá-los. — Calçamos o mesmo número, perfeito!
Erébia desceu as escadas, preparou
ovos e café. Depois que comemos, pegou dois sacos grandes de lixo e subiu
novamente para o meu quarto. Embrulhou o corpo que já estava ficando rígido.
Depois jogou-o sobre o ombro e desceu novamente para a sala.
Eu estava pasma. Meu corpo não
era forte assim. Aquela força só podia ser dela. Antes de sair, pegou minha
bolsa, conferiu os documentos, pegou a chave do carro da minha mãe.
— Eu sei que você não gosta de
dirigir. Então vamos nos manter assim, até eu terminar de resolver isso, ok?
— Unhun — concordei com um murmúrio.
Tinha algo me incomodando. Erébia
estava agindo muito a vontade no meu corpo. Ela agia como se sempre tivesse
feito esse tipo de coisa. Uma sensação lá no fundo começava tomar forma, como
um verme. Resolvi ignorar.
Sem esforço algum, Erébia jogou o
embrulho no porta malas do Meriva. Entramos no carro, ela deu partida e fomos
embora. Só quando pegamos a estrada, percebi que estávamos indo longe demais.
— Para onde estamos indo afinal?
— Para minha casa.
Paralisei. Nos conhecíamos há
pelo menos dez anos e ela nunca tinha mencionado sua casa. Nunca. E agora eu
estava indo direto para os seus domínios! Fiquei ansiosa como uma garotinha.
Ela percebeu.
— Animada para conhecer minha
casa, coelhinha?
Não respondi. “Coelhinha” era um
apelido muito mais ridículo do que qualquer outro.
— A vida adulta está te tornando
rabugenta muito rápido, Liz.
— Se isso quer dizer que eu estou
crescendo, então estou mesmo.
Ela riu.
— Por mais rabugenta que você possa
vir a se tornar, seu coração sempre vai ser precioso, Liz. Tão precioso, que
qualquer um do mesmo material que eu não conseguiria ficar longe.
Nunca perguntei o quê ou quem
Erébia era. Ela existia e eu a amava. E quem liga se ela é um monstro, uma
bruxa, humana ou alienígena? Quando ela entrou na sala de aula se apresentando
como professora de história, meu coração disparou. Naquele momento descobri que
gostava de meninos e meninas, igual a musica do Legião.
Eu perseguia a professora
Stapapoulos, me tornei a melhor aluna da turma. Vivia arrumando desculpas para
tirar dúvidas com ela fora do horário de aula. E quando descobri que ela dava
aulas particulares também, convenci minha mãe de que eu precisava muito de
reforço.
E antes que pudesse entender o
que estava havendo, já tínhamos trocado beijos e carícias. Nossa primeira vez
foi no sofá da salinha comercial alugada para as aulas. Estar com Erébia tinha
o tesão do proibido, e a mágica que tornam sagrados os segredos. Ela era o
pedaço da minha história que era só meu e de mais ninguém.
Um dia, ela me levou para o limite
do universo, onde todas as galáxias se encontravam. Foi a coisa mais linda que
vi e a lembrança que carregaria comigo para qualquer outra vida que ousasse
viver. Mas isso tinha sido há muito tempo atrás.
— Chegamos. — Ela disse, saindo
da estrada principal e virando numa ruazinha de terra batida, com mato dos
lados. E lá no final, uma casinha branca e bem cuidada fechava a rua. O tipo de
construção lembrava muito um chalé.
Estacionamos em frente a casinha.
Erébia saiu do carro e sem nem mesmo averiguar se tinha alguém nos observando,
apanhou o embrulho do porta malas, jogou por cima do ombro e entrou na casa,
que não estava trancada.
Eu queria ver tudo. Mas Erébia
desceu um lance de escadas e fomos parar no porão.
— Que escuridão. Você não pode
acender a luz? — E a luz acendeu quase ao mesmo tempo em que pedi.
— Ainda tem medo de escuro?
— O que vai fazer agora? —
Perguntei de volta.
Procurei observar onde estávamos.
Parecia um laboratório. Laboratório num porão. Tinham freezers grandes,
prateleiras cheias de tubos e tipos diferentes de potes de vidro.
De baixo de uma mesa grande
encostada em uma parede, tinham dois barris de plástico gigantes.
Erébia jogou o embrulho em cima
da mesa de metal e então começou a rasgar o saco.
— Melhor fechar os olhos, Liz.
Fechei.
— Não esses olhos. Feche os olhos
da mente.
Tentei. Fechar os olhos da mente
soava como não querer enxergar o que estava na minha cara. Ok. Eu podia fazer
isso. Eu realmente era boa em fazer isso. No entanto... senti a curiosidade
mórbida lambendo meu estômago. Abri um olho e depois outro.
Erébia puxou um dos barris que
estava em baixo da mesa e com cuidado acomodou o corpo lá dentro. O líquido
transparente e sem cheiro que tinha la dentro, foi dissolvendo o antigo corpo
da minha namorada. Uma contração no estômago e logo depois eu estava vomitando
o café da manhã dentro do barril.
— Que droga, Liz! — Erébia
reclamou entre uma golfada e outra.
— Preciso lavar a boca — falei
ainda nauseada.
— Nem precisa pedir.
Subimos e entramos no banheiro
perto da cozinha. Erébia escovou e escovou minha boca. Gargarejamos e de
repente eu me senti muito cansada.
— Não vai me mostrar a casa? Você
nunca me trouxe aqui. Eu sempre tive curiosidade de saber como era o lugar que
você morava.
— Não tem nada aqui para ver.
— Tem certeza? Pois eu achei
muito suspeito você ter material para derreter cadáver no porão da sua casa. E eu
juro que já vi alguma coisa parecida na tv naquele seriado, como era mesmo o
nome?
— Não duvido. Bem, aqui é a sala.
Um cômodo pequeno, mas aconchegante,
com muitas estantes de livros. No canto, uma poltrona com luminária ao lado,
dava um ar romântico às coisas. A cozinha era pintada de azul e além dos móveis
normais, ainda tinha um fogão a lenha bem pequeno. Voltamos para a sala e
subimos uma escada que dava num mezanino. Uma cama estilo futon, sobre uma base
de madeira ocupava a maior parte do espaço. Mais livros ao redor e no teto, uma
claraboia.
— Sua casa é muito fofa.
Romântica. Eu não sabia que você gostava tanto de ler.
— Pensei em te trazer aqui muitas
vezes.
— É mesmo?
— Mas nunca tive coragem. Aqui é
tão meu. E depois, você jamais saberia vir aqui por conta própria.
— E onde é exatamente aqui ? Porque dá pra sentir que não
estou exatamente em São Paulo, é como se estivéssemos em algum lugar que não
está em lugar nenhum.
Erébia sorriu, surpresa. E eu sei
que ela sorriu, porque eu senti ela usar meu rosto. Era estranho dividir o meu
corpo com alguém. Mas não tão estranho quanto achei que fosse.
— Uma fenda bem pequena entre
lugar nenhum e canto algum. Nenhum humano vivo consegue acessar sem ajuda. E
você ter conseguido descrever tão bem a sensação de estar aqui é surpreendente.
— Por que?
— Porque você é só uma humana.
Para mim não fazia sentido. Mas
sempre achei que as coisas que Erébia falava se explicariam sozinhas de um
jeito ou de outro. Tinha sido assim desde que eu conseguia me lembrar. E vindo
dela, nada parecia fora do contexto.
Decidimos dormir por lá. O tempo
na casa da fenda parecia simplesmente não existir. Eu sabia que já devia ser
noite. Mas lá fora ainda tinha sol. O mesmo sol de quando chegamos.
— É sempre dia aqui?
— Depende para onde olha. —
Erébia disse, puxando a alavanca e abrindo a claraboia. Lá em cima, no céu, já
era noite.
Fiquei maravilhada. Mas logo
senti minha cabeça apagando. Eu estava exausta. Um tipo de cansaço inadiável.
Erébia insistiu que devíamos jantar antes de dormir. Eu nunca como antes de
deitar a noite.
Mesmo assim, cedi. Ela preparou
um creme e salada de rúcula. Com as
coisas que nunca estragam da geladeira que nunca para de funcionar. Comemos
em silêncio, mastigando sem pressa. Minha capacidade de pensar ficando cada vez
mais pastosa.
— Erébia?
— Sim?
— Por que está tão calada?
— Cansaço.
— Eu também to exausta.
Subimos para o mezanino, tiramos
a roupa e antes que dormíssemos de vez, nossas consciências se buscaram e sei
que nos beijamos.
— Boa noite, Liz.
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________________________ CONTINUA____________________________________
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