— Não tenho certeza se quero fazer isso, Zig. — Disse Vinni,
jogando uma bituca no chão e amassando com o coturno.
Estávamos no muro dos fundos do cemitério Necrópole. Era meio da
tarde de um domingo. Na Avenida Cardeal Arco Verde, quase ninguém passava. Um
carro ali, outro aqui. E ninguém mais à vista. Era estranho pensar que no dia
seguinte aquele mesmo lugar estaria apinhado de gente, de carros e alto-falantes,
de lojas berrando suas promoções. Mas naquele momento, não. Era tudo calmo.
— Não vale dar pra trás agora. — Respondi. — Você que quis vir de
dia. Podíamos ter esperado até a noite.
— Nem pensar! Detesto cemitérios. São horripilantes de dia,
imagina à noite! Nem pensar, sua maluca!
Pulamos o muro que não era tão alto. Do outro lado nos apoiamos
sobre uma lápide alta. Entramos rapidinho.
E começamos a caminhar apressados entre os jazigos. O cemitério parecia
ser bem antigo.
— É por aqui. — Vinni falou apontando para um corredor estreito
formado por uma fileira de lápides e o muro que havíamos acabado de pular.
— Ual! Isso é tão excitante! — Falei sem me conter. Era tão
divertido! Estávamos prestes a descobrir o que havia acontecido com meu corpo.
Como não dava para andarmos lado a lado, ele foi na frente,
mostrando o caminho e eu ia logo atrás.
— Vinni... — Chamei puxando a manga do casaco dele.
— O que é? — Ele respondeu sem olhar para trás.
— Por que aqui? Por que, sei lá, não me queimou? Você disse que
não gosta de cemitérios...
— Eu queria que você ficasse num lugar onde eu pudesse te
encontrar. Me imaginei vindo aqui te deixar flores e conversar com o nada,
igual as pessoas fazem nos filmes. Se eu soubesse que você ia ficar me
assombrando eu teria te cremado mesmo.
De um jeito estranho o Vinni era uma pessoa muito fofa! Tem
pessoas que são fofas e não precisam fazer nada para isso. Mesmo que elas
teimem em interpretar o papel de ranzinzas.
Andamos naquele lugar esquecido que fedia a coisas velhas,
lamentos e lágrimas por mais alguns minutos. Já estava me perguntando se ele
sabia mesmo para onde estávamos indo quando paramos.
Uma árvore linda estava em nossa frente, a copa frondosa, coalhada
de flores amarelas lindíssimas. O chão ao redor da árvore estava coberto das
mesmas flores, formando um tapete redondo e irregular. Tive a sensação de que o
tempo havia parado. Do lado esquerdo estava minha lápide, feita de uma pedra
branca muito bonita, escrito ZIG.
— Poxa Vinni, é tão lindo! Nossa! É tão lindo! Muito obrigada!
Ele ficou mudo, olhando para mim e para a lápide e para a árvore.
— Você acha mesmo que preciso abrir seu túmulo, Zig?
Fiquei de frente para ele.
Nossa diferença de altura sempre me fazia ter que puxar seu rosto para
mim quando queria atenção.
— Sim. — respondi. —Se não abrirmos você nunca vai se convencer de
que voltei de verdade. Sem contar que estou com muita curiosidade para saber o
que aconteceu com meu antigo corpo.
Ele suspirou. Tirou o casaco e começou o trabalho minucioso de
dobrar as mangas da camisa de algodão. Dobrou também a calça jeans até os
joelhos.
Com muito esforço empurrou a tampa de pedra branca, liberando a
abertura da cova. Pulou para dentro do buraco e abriu meu caixão. Joguei a
lanterna para ele. Amarrei uma corda na árvore e joguei a outra ponta para o
buraco onde Vinni estava.
Me agachei na borda da cova, posicionando a lanterna para que
Vinni pudesse ver melhor lá em baixo. Ele olhou para mim, como quem pedisse
permissão para violar meu descanso eterno. Assenti com a cabeça e ele forçou a
tampa do caixão.
Tinha uma versão bem ruim de mim lá dentro. A pele parecia uma gosma
velha e queimada. Uma versão derretida. O cabelo era um ninho roxo, semelhante
a uma palha de aço. Essa aparência pós morte era horrível! E contra todas as
probabilidades, não fedia. — Pelo menos isso — pensei.
Vinni olhava para aquela coisa no caixão com atenção. Olhava de
volta para mim.
Notei que meu amigo estava suando muito, incomodadíssimo. Seu
corpo estava tremendo.
— Que brincadeira é essa, Zig? — Perguntou, a voz mais baixa que o
normal.
— Eu também não sabia que meu corpo ficava assim. — Tentei
explicar. — É esquisito, né?
— Isso é uma múmia derretida! Isso... isso não é você!
— Eu fui isso aí, sim! — Discordei.
Vinni abaixou e tocou naquela coisa derretida que era o cadáver.
Um pedaço grudou em seu dedo e ele começou a sacudir a mão, enojado.
— Isso é impossível... — Vinni parecia péssimo. De repente era
como se ele estivesse para cair e ficar por ali mesmo, na minha cova. — Preciso
sair daqui.
— Suba, amarrei firme a corda!
Empapado de suor, Vinni subiu de volta e o ajudei a repor a tampa
da lápide. Seu peito subia a descia com a respiração rápida. Ele não parecia
mais convencido de que eu não era uma alucinação.
Um silêncio esquisito havia se instalado entre nós. Não sabia o que dizer, assim como não sabia o
que estava se passando na cabeça dele. Eu bem que podia ter esse poder, né? Ler
mentes... Pensando bem, melhor não. Quando escuto um elogio mesmo que ele seja
falso, gosto que seja um elogio.
Ouvimos um berro e nos assustamos. Um velho baixinho corria em
nossa direção com um cacetete!
— EI VOCÊS DOIS!!!
Não precisamos falar um com o outro para saber o que devíamos
fazer. Corremos como se não houvesse amanhã. Corremos desesperados. De vez em
quando olhávamos para trás para saber se o velho estava mais perto e apesar de
não vermos nada, ouvíamos os passos cansados do guardinha.
Chegamos à parte do muro que era mais baixa e pulamos de volta
para a rua. Continuamos correndo quadras e mais quadras avenida a cima, até
chegarmos à Praça Benedito Calixto. Estávamos exaustos, o coração saindo pela
boca. Nos jogamos no primeiro banco que vimos. Vinni arfava.
Quando finalmente ele recuperou o ar, falou quase sorrindo:
— Você ouviu o que aquele velho falou?
— “Ei vocês dois!” Foi isso o que ele disse, eu acho.
— Ele viu você Zig! Ele viu você! — E desatou a rir.
Em seguida me puxou e continuamos subindo a avenida até chegarmos
ao metrô. Dentro da estação ele perguntava às pessoas se estavam me vendo.
Todo mundo olhava para o Vinni como se ele fosse uma espécie de
doido. Pensamento que eu confirmava, sinalizando com o dedo indicador que ele
era mesmo, um bocado matusquela. Claro que estavam me vendo, ora bolas! Eu não
era uma alucinação!
— Esse tempo todo... — Ele começou. — Esse tempo todo era só eu
ter perguntado se os outros estavam te vendo. Eu não precisava ter violado um
túmulo!
— Er... eu também não pensei nisso! Mas foi divertido, não foi?
Naquele horário o metrô estava vazio. Estávamos sentados lado a
lado. Vinni segurava a cabeça, como se tentasse entender o que estava se
passando.
Voltamos ao apartamento sobreloja. Mal entramos, Vinni me prensou
na parede, segurando meu rosto com as duas mãos. Que rude!
— O que você é, garota? — Falou baixo, a voz saiu grave,
preocupada. — Já entendi que não está morta, que não estou alucinando. Ou
talvez eu já esteja num grau tão alto de loucura que estou fantasiando sem
limites...
— Saia de cima de mim. Saia agora.
Ele obedeceu e deixou o corpo desabar no sofá.
— Você sabe quanto custou te enterrar, sua retardada?! Despesas
funerárias são altas, sabia? Eu devia ter deixado você lá, espatifada naquela
calçada e ter saído de fininho!
— Poxa Vinni, desculpe. Eu não sabia que conseguiria voltar. Isso
também é novo para mim, acredite. E você me enterrou num lugar tão lindo...
— Isso é bizarro! Quem é você, Zig? Ou melhor, o que é você? Não venha com essa
conversa de que não sabe, de que não lembra. Eu posso ver na sua cara que você
sabe.
— Vinni... por favor, eu.. eu não quero falar sobre isso. —
respondi, olhando para os meus pés.
— Como assim não quer falar sobre isso? Eu tenho o direito de
saber com o que estou lidando! O que você quer afinal, me enlouquecer? Está
fazendo um ótimo serviço!
— Confia em mim, pode ser? Eu também preciso de um tempo para
entender. — Mentira. Eu precisava era de um tempo para criar coragem. Por que
era tão difícil dizer o que eu era?
— Olha, eu tenho um monte de trabalho para fazer. — Disse ele,
apontando para a mesinha do computador com pilhas e mais pilhas de papéis
empilhadas sobre ela. Era o caos. — vai dar uma volta, some um pouco da minha
frente, pode ser?
— Vinni...
— Some garota.
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