Cara, eu tinha que parar com essa mania de dormir em qualquer
lugar. Sentei devagar, e mais devagar ainda abri os olhos. Pisquei algumas
vezes até entender onde estava. Uma ressaca de sono em excesso deixava tudo
mais lento. Uma névoa fumacenta se espalhava ao meu redor. Você já ouviu falar
que as pessoas ficam um pouco burras quando acordam? Bem, eu não sou exatamente
uma pessoa, mas comigo não é diferente. A burrice pós sono me acompanha. Experimentei
mexer o pescoço. Dolorido.
Através da neblina reconheci os móveis. O teto branco. Sim! Eu
estava no apartamento de Vinni! E não era ele ali, bem na minha frente, sentado
sobre a mesinha de centro? Os olhos dele estavam injetados, com manchas roxas
ao redor. A boca escurecida. A pele antes clara, agora parecia amarelada. E as
mãos tremiam, segurando um cigarro já no fim.
— Er... oi? — Tentei começar um diálogo. Vinni continuava me
encarando. Levou a bituca de cigarro à boca, deu uma última tragada e por fim
esmagou o que restou num cinzeiro ao seu lado.
— Sabe — Começou ele. — O sentimento de culpa pode gerar
alucinações. Devo estar num grau muito elevado, pois estou ouvindo minha
alucinação falar comigo.
Só então percebi que ele falava para um aparelhinho. Um tipo
moderno de gravador.
— O que aconteceu com você? — Perguntei.
— Matei minha melhor amiga. Todos dizem que foi um acidente. Eu a
empurrei do oitavo andar. Eu sou um assassino. Mas ninguém acredita. A justiça
não quer me prender. Eu sou muito covarde para tirar minha própria vida.
Comecei a me preocupar de verdade com o estado do meu amigo. Ele
parecia estar em outra dimensão. Suspirei.
— Mas Vinni, realmente foi um acidente, ok? Você estava bêbado
demais. E eu que estava no lugar errado. Quem, em sã consciência, ficaria se
equilibrando num guarda corpo?
— Interessante. — Continuou ele para o gravador. — Estou
projetando palavras de conforto em minha alucinação. Como ela poderia estar
aqui, quando na verdade a enterrei semana passada?
— Vinni. Pare com isso. — Falei com firmeza, tirando de sua mão
aquela porcaria prateada. — Eu estou aqui de verdade. É sério. Eu sei que eu
morri, mas estou de volta, tá? Não sei como, mas estou. Você não me matou, foi
um acidente.
— Não, não foi. — rebateu, exasperado. O estado dele era péssimo.
Tentei confortá-lo afagando seu rosto. A barba falhada lixava de leve a pele de
minha mão. Ele fechou os olhos.
— Eu gostaria tanto que isso tudo fosse verdade. Que você, por
algum milagre estivesse viva, Zig.
— Mas é verdade, cara, eu estou aqui. Continuo vivendo. Não sei
como.
— Então existe vida após a morte? Você veio buscar sua vingança? —
Os olhos dele, não pareciam fazer uma pergunta. Aquilo era mais uma súplica.
— Não Vinni, claro que não. E também não sei o que há do outro lado,
já que estou nesse aqui.
— Me leve com você, Zig. Arraste-me para o inferno. Eu mereço.
Eu... eu te matei!
Existem algumas coisas ridículas demais. Como por exemplo, por que
ele achava que eu iria para o inferno? Não que eu ache que exista um, claro. E
além disso, também existem algumas coisas que eu não aguento. Existem algumas
coisas que bloqueiam meus pensamentos e bons sentimentos. Aquela cara de “me
odeio e quero morrer” que o Vinni estava usando, corroía meu pequeno estoque de
paciência.
E antes que eu pudesse pensar em mais alguma coisa, minha mão
explodiu na cara dele.
— Pare com isso agora! — vociferei. Embora não estivesse com tanta
raiva assim. — Que porcaria de assassino você é que fica choramingando a morte
de sua vítima? Eu não entendo muito bem dessas coisas, mas alguém que mataria
outra pessoa, assim de boas, não se trancaria em casa e desistiria da própria
vida, se enterrando em auto pena! Acorda seu cretino! Acorda! — Só quando
terminei o discurso, percebi que o fiz estapeando a cara do Vinni.
O olhar dele tinha mudado. Agora sim, parecia mais vivo, mais
acordado.
— Então Vinni, você pode ser muita coisa. Inclusive meu melhor
amigo. Mas não é um assassino. Tire essa merda da sua cabeça e aceite que eu continuo
vivendo.
Ele começou a rir. Achei que era um bom sinal até começar me
preocupar de novo. A risada parecia não ter fim, embora o oxigênio dele sim.
Quando pensei se deveria esbofeteá-lo novamente, ele parou.
— Você... Você me chamou de cretino? Eu realmente estava
lamentando sua morte! Eu vi sua cabeça disforme, seus miolos espalhados pela
calçada, ok? Eu vi! Eu enterrei você. E por isso sei que estou tendo
alucinações. Mas parece que mesmo quando eu imagino, você continua sendo essa
escrota! Você tem problema garota, não sabe confortar ninguém! — Ele esfregava
com vontade as bochechas vermelhas. A essa altura eu não sabia mais se a
vermelhidão era de raiva ou por causa dos meus tapas.
Eu tinha que fazer alguma coisa, para tirar o meu amigo dessa depressão
pós-assassinato-não-intencional. Ele tinha me enterrado, não tinha? Ahá, talvez
seja isso, então. Só talvez.
Continua na próxima terça!
Leia ZIG : Parte 01 | Parte 02
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