Desde sempre tive medo de me
perder. Não de me perder do caminho de casa. Mas de perder minha consciência.
De, de repente, eu não ser mais eu. E foi assim que descobri que existe um
ponto entre a loucura e a sanidade. Um ponto imperceptível.
Descobrir onde ele fica é muito
importante para não atravessá-lo. Isso só se você desejar ser normal para
sempre. Eu atravessei esse cercado de madeira podre e arame velho há muito
tempo. Tanto tempo que não lembro quando nem onde. A verdade é que ninguém liga
se você não é quem deveria ser. Porque no final ninguém sabe. Só você mesmo. E
é isso o que importa.
Acho que a minha mente ficou resvalando pra lá e pra cá antes de
acordar numa viela fedorenta. Enquanto me erguia e tentava entender o que
estava acontecendo, olhei para o céu e percebi a noite. Um poste na esquina mal
iluminava o lugar.
Uma coisa é certa: preciso começar a dormir em lugares mais
confortáveis. Tirei uma casca de banana da cabeça, meio grudada no meu cabelo.
Quem me jogou nessa lata de lixo?
Quando despertei do sono de morte, lembrei-me da última coisa que
ocupou minha mente antes de bater as botas. Por isso tenha cuidado com seus
últimos pensamentos. Eles podem revelar coisas que gostaria de esquecer. Então,
só por precaução, quando for morrer, tente não pensar em nada. Vai que você
volta, né?
No meu caso, lembrei de uma coisa importante. Quem eu sou. Ou
melhor, o que eu acho que sou. Alguma coisa assim. Então, por um instante, tudo
começou a fazer sentido. Essa compreensão estranha que eu tenho sobre tudo e ao
mesmo tempo sobre nada. Essa minha dificuldade de afirmar que sou outra coisa
além de mim.
Uma pontada muito forte atravessou minha barriga. Fome. Ainda
grogue e testando as pernas, me arrastei para a rua.
Fiquei tão feliz quando li a plaquinha o nome Rua do Grito. Eu
ainda estava em São Paulo! E pelo visto, não muito longe da casa do Vinni. Quanto tempo teria se passado desde que
morri? Porque, sério, eu sei que virei patê, depois virei farofa e voltei. Isso
é fato.
Conheci o Vinni na frente de uma balada. Lá dentro tocavam cover
de David Bowie, enquanto eu vomitava gosmas na calçada.
Quando eu ainda estava tentando entender a função da vida nessa
dimensão, ele apareceu, estendeu a mão e me ofereceu um táxi para ir para casa.
Eu não tinha para onde ir. A não ser que ele tivesse um táxi interdimensional,
ou coisa do tipo. E eu também não queria sair dali. Só queria continuar
curtindo minha zonzeira pós existência.
Talvez eu estivesse parecendo algum tipo de débil mental. Ele me
levou para sua casa, curou o que pensava que era a minha bebedeira. E então
ficamos amigos. E eu fui ficando por lá também. Era divertido acompanhá-lo.
Vinni assistia séries de ficção científica e coisas sobrenaturais. Mas não era
fã de nenhuma. Só preferia isso à novela.
Nos últimos dias antes de eu morrer, estávamos vendo documentários
e mais documentários de extras terrestres e afins. Mas tirava sarro de tudo.
Talvez ele quisesse que eu pensasse que não ligava para nada daquilo.
De repente um alarme disparou na minha cabeça. Quanto tempo
deveria ter passado? Quanto tempo eu passei vagando pelo escuro, me agarrando
ao meu último pensamento?
Puxei o capuz do moletom e enfiei as mãos nos bolsos. Apertei o
passo e logo cheguei à porta de ferro que dava para um apartamento de
sobreloja, no final da Silva Bueno. Apertei o interfone. Uma, duas, três vezes!
Vinni não poderia ter um sono tão pesado!
Quando eu estava pensando em simplesmente deitar e dormir ali
mesmo na calçada, ouvi o ferrolho sendo puxado do lado de dentro, seguindo do
som de mais um monte de trancas. Vinni era paranoico.
— Puta que pariu! — Foi o que ele disse. A cara do meu amigo era
de puro pavor. Ele caiu para trás e começou a rastejar de costas na escada. Era
bem patético vê-lo se arrastar como um covarde. Se bem que eu deveria estar
parecendo um tipo de assombração. Não tinha parado para pensar a respeito.
Dãããr.
O que eu poderia dizer para alguém naquele estado? Será que havia
alguma coisa errada comigo? Com a minha cara, sei lá. Eu estava com fome e meu
corpo muito cansado. Não ia dar para acalmar ninguém naquele momento. Eu só
disse que estava tudo bem.
Fechei a porta com todas as trancas de cima a baixo, virei a chave
principal duas vezes e subi as escadas, passando por um moço estupefato que
tremia muito. Fui direto para a cozinha,
engoli com voracidade as poucas coisas que encontrei. Entre elas havia
um delicioso pote de manteiga. Com o estômago entupido, me arrastei até a sala
e me joguei sobre o sofá. Para um sono bem vivo dessa vez.
Continua na próxima terça!
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