Kai
se esgueirava pelo corredor do casarão, não podia ser encontrado antes de
descobrir o que acontecia. Sua chegada na nova casa após a loja tinha sido
feliz até o momento que descobriu que os outros moradores não eram tão
receptivos.
Bom
agora, estava ali. Em silêncio observou pela fresta da porta. Getúlia, a
porquinha e Lalau, o cachorro estavam carregando um pacote até um canto. De
repente ouviu uma voz amedrontada.
--
Por favor! Me deixem em paz.
--
Você tem que aprender uma lição Rabbit. Ou ninguém mais aqui irá nos respeitar.
– A voz era de Lalau.
Pela
fresta, aterrorizado, viu o brilho de uma lâmina sob a fraca luz da lua que
iluminava o ambiente. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Rabbit, o
coelho foi pego na mesma máquina de brinquedos que ele. Tentou lembrar o que
havia acontecido naquele dia para fazer com que os veteranos o ameaçassem.
O
garotinho Ricardo havia brincado o dia todo com Rabbit desde que chegou e
depois o mesmo se gabou que era o novo brinquedo favorito. Tolo.
Agora
Rabbit estava se borrando de medo num canto escuro ameaçado com uma faca. Num
segundo ouviu um rasgo e o grito estrangulado do coelho falastrão.
Fechou
os olhos. Precisava sair dali, não queria problemas e nunca gostou muito de seu
vizinho de máquina mesmo. Sempre zombava dele por ser branquinho e fofo
enquanto ele era só um et verde vomito de vestido. Afeee...
Ao
se virar para sair uma maldita tabua rangeu. Foi o suficiente.
Lalau
começou a correr em direção a porta. Estava perdido. Queria ser um et que
voasse para pelo menos fazer algo. Maldito vestido que agora o impedia de
correr com as pernas curtas.
Conseguiu
com sufoco chegar ao fim do corredor e virar a esquina da parede um segundo
antes do cão chegar a porta.
Tentou
encher o ar nos pulmões de algodão sem fazer barulho. Droga! Droga! Droga!
Precisava
voltar e se esconder. Embaixo da cama. Sim, ninguém o encontraria embaixo da
cama. Nem mesmo Ricardo, afinal ninguém quer brincar com um et. Suspirou
deprimido.
Merda!!!!
O cachorro ouviu. Porque foi suspirar! Raios era um burro desmiolado mesmo.
Corria sem parar agora até o quarto, não havia como se esconder. Droga ele
estava latindo nos seus calcanhares.
Não
havia tempo de chegar ao quarto de Ricardo, entrou na primeira porta aberta que
encontrou.
Era
um quarto cor de rosa. Tudo nele era rosa. E a dona do quarto estava olhando para
ele.
Congelou.
A humana o vira correr. E agora? Pense Kai, Pense. Ou melhor não pensou. Caiu
de lado e voltou a ser um objeto inanimado de espuma.
Não
sabia se isto ia colar, mas esperava que ela não chamasse um exorcista ou
gritasse. Pensariam que ela tinha um sonho e o jogariam no lixo pela manhã. O
LIXO! Definitivamente era o ser mais burro do universo. Ainda ouvia o som do
cachorro no corredor. A humana pelo jeito também ouvira. Fechou a porta do
quarto que estava entre aberta, passou a chave.
Prendi
a respiração novamente. Ela se agachou e... começou a me cutucar com um dedo.
Sério,
isto é irritante. Acho que prefiro ser jogado no lixo logo.
Mas,
ela não jogou. Ficou lá cutucando. Sentou e ficou olhando. Como se esperasse
quanto tempo eu podia ficar sem me mexer. Há! Espere sentada mesmo porque posso
fazer isto para sempre queridinha. Sou ótimo em ser uma pelúcia esquecida.
Ficamos
assim por duas horas. Ela pegou seu travesseiro na cama e deitou a meu lado.
Ficou me olhando até dormir.
Ao
amanhecer ambos acordamos aos gritos da mãe. Dizendo que Lívia estava atrasada,
a garota rosa se vestiu correndo e pegou uma mochila também rosa para sair.
Antes de partir para meu horror, colocou-me na coisa rosa e me levou com ela.
Tentei
me ajeitar na sacola incomoda, por uma fresta rasgada vi que Getúlia estava
parada no canto do corredor, como um boneco esquecido. Mentira é claro. Estava
apenas esperando para entrar e pegar a testemunha fujona. Eu. Estava com os dias
contados. Ia virar uma espuma rota cortada no lixo. Acho que não era má ideia
estar com a humana pelo jeito, pelo menos por enquanto.
Lívia
passou a me levar para todos os lados. Não me deixava só depois disto, era como
se pressentisse que eu precisava de ajuda. Sempre trancava o quarto ao entrar e
passou a conversar comigo e contar sobre suas coisas. Me chamou de Clarisse.
CLARISSE! Culpa do vestido idiota. Todos sempre me zoando achando que eu era
mulher. Quem coloca um vestido num et? Fabricantes idiotas.
Mesmo
assim não era tão ruim participar das brincadeiras e dormir ao seu lado. Era
uma garota esperta. Conforme a semana passou, pensei que a dupla do mal havia
desistido de procurar. Mas não ia arriscar sair do lado de minha protetora.
Também
era muito mais confortável ali, menos concorrência. As bonecas de plástico não
falavam, não eram vivas como pelúcias. E só havia ele de pelúcia ali. Lívia
disse que era alérgica e por isto a mãe não a deixava ter nada deste tipo.
Então eu era o segredo dela.
Gostei
disto! Eu era um segredo, um amigo e tinha um dono pela primeira vez na
vida. Afinal eu não iria para o lixo. Lívia
aparentemente não ficava doente também, ela me embrulhava num pano para dormir,
assim ela não tinha contato direto comigo e ainda estávamos juntos.
Acho
que no fim estava salvo. Nunca fui tão feliz.
Novamente
Lívia se atrasou para aula. Hoje ela esqueceu de me pegar. Eu também não fiquei
a vista pois dormi demais.
Quando
acordei havia uma lâmina em meu pescoço.
--
Adeus Etezinha idiota.
Foi
tudo que ouvi antes de minha cabeça ser separada do corpo. Fui retalhado em diversos pedaços.
Lívia gritou muito ao me achar na volta, chorou e pediu para sua mãe me remendar. A
mãe me jogou no lixo e disse que compraria uma boneca para ela.
Sem
que percebesse, minha humana pegou meus retalhos no lixo e salvou. Pediu a sua
avó que me costurasse.
Agora
sou um et remendado. Mesmo cheio de cicatrizes continuo dormindo com Livia, ela
nunca mais saiu de meu lado desde então. Nunca se perdoou pelo que aconteceu
quando me deixou.
Hoje
estou no berço de um pequeno humano. Jorge, ele é o filho de Lívia. Me baba o
tempo todo, o marido dela acha um absurdo ter um bicho retalhado de et tão feio
no berço quando poderia ter outros brinquedos bonitos com o bebê. Lívia manda
ele se lascar.
Amo
ela.
E esse foi um conto de Josy Santos!
O conto acima foi escrito para uma oficina colaborativa (ótima!) do Eric Novelo (Exorcismos, amores e uma dose de blues).O desafio proposto para este conto, foi transformar nossos personagens em pelúcias. E então? Gostaram?
Me aventurando no mundo das letrinhas há cerca de um ano, incentivada pela Dany Fernandez.
Publiquei três contos em duas coletâneas desde o ano passado e aos poucos vamos indo cada vez mais.
Espero que gostem da leitura ou não e comentem e deixem sua opinião!
Abraços ;)
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