Tramas de Pelúcia

em quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Kai se esgueirava pelo corredor do casarão, não podia ser encontrado antes de descobrir o que acontecia. Sua chegada na nova casa após a loja tinha sido feliz até o momento que descobriu que os outros moradores não eram tão receptivos.
     Sabia que estranhariam, afinal não é todo dia que se vê um et de pelúcia verde florescente. Ainda por cima de vestido. Isto sempre foi motivo de riso com os outros bichos da máquina da qual ele fazia parte.

Bom agora, estava ali. Em silêncio observou pela fresta da porta. Getúlia, a porquinha e Lalau, o cachorro estavam carregando um pacote até um canto. De repente ouviu uma voz amedrontada.

-- Por favor! Me deixem em paz.

-- Você tem que aprender uma lição Rabbit. Ou ninguém mais aqui irá nos respeitar. – A voz era de Lalau.

Pela fresta, aterrorizado, viu o brilho de uma lâmina sob a fraca luz da lua que iluminava o ambiente. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Rabbit, o coelho foi pego na mesma máquina de brinquedos que ele. Tentou lembrar o que havia acontecido naquele dia para fazer com que os veteranos o ameaçassem.

O garotinho Ricardo havia brincado o dia todo com Rabbit desde que chegou e depois o mesmo se gabou que era o novo brinquedo favorito. Tolo.

Agora Rabbit estava se borrando de medo num canto escuro ameaçado com uma faca. Num segundo ouviu um rasgo e o grito estrangulado do coelho falastrão.

Fechou os olhos. Precisava sair dali, não queria problemas e nunca gostou muito de seu vizinho de máquina mesmo. Sempre zombava dele por ser branquinho e fofo enquanto ele era só um et verde vomito de vestido. Afeee...

Ao se virar para sair uma maldita tabua rangeu. Foi o suficiente.

Lalau começou a correr em direção a porta. Estava perdido. Queria ser um et que voasse para pelo menos fazer algo. Maldito vestido que agora o impedia de correr com as pernas curtas.

Conseguiu com sufoco chegar ao fim do corredor e virar a esquina da parede um segundo antes do cão chegar a porta.

Tentou encher o ar nos pulmões de algodão sem fazer barulho. Droga! Droga! Droga!

Precisava voltar e se esconder. Embaixo da cama. Sim, ninguém o encontraria embaixo da cama. Nem mesmo Ricardo, afinal ninguém quer brincar com um et. Suspirou deprimido.

Merda!!!! O cachorro ouviu. Porque foi suspirar! Raios era um burro desmiolado mesmo. Corria sem parar agora até o quarto, não havia como se esconder. Droga ele estava latindo nos seus calcanhares.

Não havia tempo de chegar ao quarto de Ricardo, entrou na primeira porta aberta que encontrou.

Era um quarto cor de rosa. Tudo nele era rosa. E a dona do quarto estava olhando para ele.
Congelou. A humana o vira correr. E agora? Pense Kai, Pense. Ou melhor não pensou. Caiu de lado e voltou a ser um objeto inanimado de espuma.

Não sabia se isto ia colar, mas esperava que ela não chamasse um exorcista ou gritasse. Pensariam que ela tinha um sonho e o jogariam no lixo pela manhã. O LIXO! Definitivamente era o ser mais burro do universo. Ainda ouvia o som do cachorro no corredor. A humana pelo jeito também ouvira. Fechou a porta do quarto que estava entre aberta, passou a chave.

Prendi a respiração novamente. Ela se agachou e... começou a me cutucar com um dedo.
Sério, isto é irritante. Acho que prefiro ser jogado no lixo logo.

Mas, ela não jogou. Ficou lá cutucando. Sentou e ficou olhando. Como se esperasse quanto tempo eu podia ficar sem me mexer. Há! Espere sentada mesmo porque posso fazer isto para sempre queridinha. Sou ótimo em ser uma pelúcia esquecida.

Ficamos assim por duas horas. Ela pegou seu travesseiro na cama e deitou a meu lado. Ficou me olhando até dormir.

Ao amanhecer ambos acordamos aos gritos da mãe. Dizendo que Lívia estava atrasada, a garota rosa se vestiu correndo e pegou uma mochila também rosa para sair. Antes de partir para meu horror, colocou-me na coisa rosa e me levou com ela.

Tentei me ajeitar na sacola incomoda, por uma fresta rasgada vi que Getúlia estava parada no canto do corredor, como um boneco esquecido. Mentira é claro. Estava apenas esperando para entrar e pegar a testemunha fujona. Eu. Estava com os dias contados. Ia virar uma espuma rota cortada no lixo. Acho que não era má ideia estar com a humana pelo jeito, pelo menos por enquanto.

Lívia passou a me levar para todos os lados. Não me deixava só depois disto, era como se pressentisse que eu precisava de ajuda. Sempre trancava o quarto ao entrar e passou a conversar comigo e contar sobre suas coisas. Me chamou de Clarisse. CLARISSE! Culpa do vestido idiota. Todos sempre me zoando achando que eu era mulher. Quem coloca um vestido num et? Fabricantes idiotas.

Mesmo assim não era tão ruim participar das brincadeiras e dormir ao seu lado. Era uma garota esperta. Conforme a semana passou, pensei que a dupla do mal havia desistido de procurar. Mas não ia arriscar sair do lado de minha protetora.

Também era muito mais confortável ali, menos concorrência. As bonecas de plástico não falavam, não eram vivas como pelúcias. E só havia ele de pelúcia ali. Lívia disse que era alérgica e por isto a mãe não a deixava ter nada deste tipo. Então eu era o segredo dela.

Gostei disto! Eu era um segredo, um amigo e tinha um dono pela primeira vez na vida.  Afinal eu não iria para o lixo. Lívia aparentemente não ficava doente também, ela me embrulhava num pano para dormir, assim ela não tinha contato direto comigo e ainda estávamos juntos.

Acho que no fim estava salvo. Nunca fui tão feliz.

Novamente Lívia se atrasou para aula. Hoje ela esqueceu de me pegar. Eu também não fiquei a vista pois dormi demais.

Quando acordei havia uma lâmina em meu pescoço.

-- Adeus Etezinha idiota.

Foi tudo que ouvi antes de minha cabeça ser separada do corpo.  Fui retalhado em diversos pedaços.

Lívia gritou muito ao me achar na volta, chorou e pediu para sua mãe me remendar. A mãe me jogou no lixo e disse que compraria uma boneca para ela.

Sem que percebesse, minha humana pegou meus retalhos no lixo e salvou. Pediu a sua avó que me costurasse.

Agora sou um et remendado. Mesmo cheio de cicatrizes continuo dormindo com Livia, ela nunca mais saiu de meu lado desde então. Nunca se perdoou pelo que aconteceu quando me deixou.

Hoje estou no berço de um pequeno humano. Jorge, ele é o filho de Lívia. Me baba o tempo todo, o marido dela acha um absurdo ter um bicho retalhado de et tão feio no berço quando poderia ter outros brinquedos bonitos com o bebê. Lívia manda ele se lascar.


Amo ela. 


E esse foi um conto de Josy Santos!

O conto acima foi escrito para uma oficina colaborativa (ótima!) do Eric Novelo (Exorcismos, amores e uma dose de blues).O desafio proposto para este conto, foi transformar nossos personagens em pelúcias. E então? Gostaram?

Me aventurando no mundo das letrinhas há cerca de um ano, incentivada pela Dany Fernandez.

Publiquei três contos em duas coletâneas desde o ano passado e aos poucos vamos indo cada vez mais.

Espero que gostem da leitura ou não e comentem e deixem sua opinião!

Abraços ;)

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