Aconteceu. Simples, intenso e inexplicavelmente irremediável: a única mulher presente naquele cortejo fúnebre estava morta: Uma legião de dois mil homens, vindos de todas as partes do mundo, seguiam tristes para o destino final da única mulher a qual foram capazes de amar sem controle.
O mundo real sempre escreveria sua própria versão do inexplicável.
Cada pedaço de pele latejava, a febre fervilhava em cada nervo. Um terrível sentimento de autoabandono. Era fato. Era real e palpável. Como não se perder entre as curvas perfeitas? Na pele alva e profana?
E qual não era o frenesi despertado pelo roçar quase animal dos corpos idênticos? Não havia mais tempo a perder em indagações racionais. Gregória jamais deixaria de pertencer a si mesma novamente. — Você é tão quente — eles sussurravam.
Lembranças explodiam cada vez mais rápido, cada vez mais forte. Queria guardar aquele momento para sempre na memória, mas ela lhe traía e seus olhos pregavam-lhe uma peça.
Procurava lembrar como tudo aconteceu. — E se eu te dissesse que nada disso é real? — Um novo suspiro e uma nova onda de prazer. Uma nova e deliciosa convulsão sacudia-lhe todo o corpo. Quando foi que ela apareceu? Há um ou dois dias talvez. Mas a sensação era de ter estado ali por toda vida.
Foi num desses fins de tarde, onde devaneios tomam conta da alma e delírios deixam marcas de fogo na mente, que um calafrio de espanto percorreu o corpo da ruiva.
Olhava estupefata para seu reflexo, quando o percebeu sair do espelho e tomar lugar no quarto tanto quanto ela própria. Como numa ordem demoníaca, uma piada de mau gosto, lá estava o reflexo tão nu e tão perfeito quanto a própria dona.
Ambas trocaram olhares atônitos. Num primeiro momento de curiosidade aproximaram-se cautelosamente. O espanto cedeu lugar ao desejo. A respiração forte e entrecortada prenunciou um longo ósculo.
Não havia pontos a descobrir uma na outra. Ambas sabiam exatamente o que desejavam. Modelo e pintura, criador e criatura. Amaram-se sem reservas, sem pudores e sem limites. Consumiram-se dias a fio. Não havia mais o resto do mundo. O universo resumia-se à latência desenfreada de um par de Gregórias sedentas e letais.
E quando muitos dias passaram e muitas noites desvaneceram ao romper da aurora, o reflexo — exaurido de suas forças — rastejou de volta para o espelho.
Gregória, percebendo o intento de sua cópia, apressou-se em destruir o caminho de volta. No auge de sua insanidade, jamais permitiria ser abandonada por seu reflexo. Aquela superfície frágil e gélida, não mais a separaria dela mesma.
Sua imagem permaneceu caída no chão. O corpo nu, entre pedaços do que outrora fora um espelho. Gregória aconchegou a cabeça do reflexo entre os seios e chorou ao perceber o último suspiro. Chorou como nunca havia chorado. Chorou até entender que sua dor jamais seria suplantada.
Foi quando uma ideia visceral tomou conta da mente já tão perturbada. Não se sabe quanto tempo levou para ser realizada. Mas foi.
Apanhando um caco de vidro, cortou suavemente a pele do cadáver e alimentou-se dele por dias seguidos. Cada pequeno pedaço de víscera escorregou por sua garganta trazendo de volta as doces e dementes lembranças dos dias em que conheceu o prazer de si mesma.
Quando finalmente nada mais restou, uma torpe saudade enfraqueceu-a e levou embora a última chama de vida existente na ruiva mulher.
Na noite em que os empregados encontraram-na morta, uma tristeza sem surpresas acalentou seus corações. Todos sabiam que os hábitos da patroa ainda a levariam embora do mundo dos vivos.
Gregória jazia nua entre seus próprios cacos, enquanto o mundo real escrevia sua própria versão do inexplicável.
Um conto de Dany Fernandez
Bom gente, eu sou a Dany aqui do blog, mesmo! hahaha
Gregória é um conto intenso que fala de uma obsessão por si mesmo. É bizarro como podemos oferecer tanto para os outros e sermos tão mesquinhos quando se trata de ser generoso consigo mesmo, né?
É isso, rs.
É isso, rs.
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